Saiba que alterações nos negócios provocadas pela pandemia geraram valor e fazem sentido incorporar no “modus operandi” futuro das organizações.
As restrições – mais ou menos acentuadas – impostas pela Covid-19, obrigaram empresas em todo o mundo a reorganizarem-se na forma como trabalham e a reinventarem os seus modelos de negócio. Alterações sem precedentes e profundas, que podem ditar a adaptação ao “novo normal” de que tanto se fala, mas que permanece uma incógnita.
Mais ou menos certas das decisões que foram tomando, a bem da própria sobrevivência, empresas em todo o mundo viram-se obrigadas a repensar os seus modelos de negócio, sem propriamente a ajuda de uma bússola que lhes indicasse o caminho. Munidas de inúmeras incertezas, que à data (e sem data à vista) as impedem de escrever planos determinísticos de retorno.
Uma coisa é certa, o “novo normal” não será igual ao “normal” de há poucos meses, e é quase certo que nada ou quase nada vai ser exatamente como dantes. E isso não tem de ser necessariamente “dramático”, sobretudo se pensarmos que “tempos de recessão são propícios a que novas ideias penetrem o mercado”, como relembra Allen Sukholitsky, analista da Xallarap Advisory, em entrevista recente ao Jornal de Negócios.
Durante o período de confinamento, muitas empresas, com capacidade de continuar a sua atividade, pelo menos parcialmente, tiveram de projetar e adotar “sob pressão” um modelo operacional radicalmente novo – por exemplo, aumentar a sua taxa de trabalho em casa, eliminar as viagens, preservando a capacidade de operar por videoconferência, redimensionar equipas, flexibilizar modelos de negócio, encurtar cadeias de decisão, otimizar processos –, que se traduziu em oportunidades como ganhos de produtividade e agilidade.
Com o reinício da atividade e sem saber o que esperar do dito “novo normal”, há que avaliar que desenvolvimentos impostos pelas circunstâncias – e que abordaremos de seguida – geraram valor e fazem sentido ser incorporados no “modus operandi” futuro das organizações num processo de melhoria contínua, como sugere a McKinsey no artigo “The Restart: Eight actions CEOs can take to ensure a safe and successful relaunch of economic activity”.
Aceleração da digitalização
Em entrevista à revista Visão, Pedro Domingos, professor e investigador em Ciências da Computação na Universidade de Washington, diz que “a pandemia veio funcionar como um acelerador do futuro em matéria de inovação e digitalização da sociedade” e, aconteça o que acontecer, nada será como dantes: “(…) Se há algo que esta pandemia veio provar, é que a tecnologia e o digital são ferramentas indispensáveis para atenuar os riscos inerentes a uma situação de calamidade.”
Como relembra a Mckinsey no artigo “The Restart: Eight actions CEOs can take to ensure a safe and successful relaunch of economic activity”, já anteriormente mencionado, “desde o início do confinamento, chief information officers (CIOs) e chief technology officers (CTOs) de milhares de empresas fizeram esforços heroicos para lidar com novas exigências em tempo recorde. Tiveram de orquestrar a mudança repentina e maciça dos seus colaboradores para trabalho remoto, recorrendo a novas ferramentas de colaboração; viram-se obrigados a desenvolver/aumentar os seus canais digitais para continuarem a satisfazer as necessidades dos clientes; ao mesmo tempo que tiveram de reforçar a sua infraestrutura de TI para responder eficazmente a um momento de especial sobrecarga.”
A importância da digitalização – para clientes, fornecedores, para a economia inteira – acelerou de uma forma sem precedentes, e gestores de todo o mundo devem concentrar-se em acelerar os seus planos de digitalização. Sob pena de não sobreviverem ao dito “novo normal”.
Trabalho remoto
De acordo com o relatório “Covid-19: Global health and crises response” da McKinsey, atualizado no início de junho, uma das incertezas mais críticas da retoma é o futuro do trabalho remoto, com todos os benefícios e desafios que revelou ter na fase de confinamento.
Por parte dos colaboradores das empresas, para quem o teletrabalho se tornou o “novo normal”, as opiniões dividem-se: se, por um lado, há quem se mostre visivelmente entusiasmado com a possibilidade de trabalhar a partir de casa – alegando aumento de flexibilidade e produtividade, e poupança de tempo e stress inerentes à deslocação para o local de trabalho –, há outros para quem a inexistência de um “escritório” em casa e a incapacidade de separar a vida profissional da pessoal são, por si só, motivos de stress.
Já do lado dos empregadores, a história é outra, como revela o recente estudo “Covid-19 and the Future of Work” da consultora de recrutamento especializado Robert Walters, que concluiu que seis em cada 10 diretores em território nacional preferem que as suas equipas regressem ao trabalho presencial. Preocupações com a produtividade dos colaboradores (62%), a preferência pelo sistema tradicional de trabalho no escritório (59%), a natureza do negócio (por exemplo, vendas presenciais – 43%), os recursos e infraestrutura tecnológica necessários (30%), preocupações com o bem-estar dos empregados (9%) e a dimensão do investimento (6%) são algumas das justificações apontadas.
A divergência de opiniões entre trabalhadores e empregadores é notória, com 44% dos profissionais em Portugal a considerar que a sua produtividade aumentou com o teletrabalho, e 96% a revelar que pretende continuar a ter a opção de trabalhar remotamente após a pandemia (apenas 4% prefere voltar a trabalhar full-time no escritório).
Divergências à parte, certo é que “trabalho remoto” não devia ser encarado como sinónimo de “trabalhar em casa”, mas sim como “flexibilidade para trabalhar a partir de qualquer lugar”, como explica o site Techcrunch num artigo intitulado “Work From Home is dead, long live Work From Anywhere”. O problema é o desafio que capacitar uma verdadeira cultura do “work from anywhere” – muito mais do que o simples binário de “no escritório” ou “em casa” – representa para as empresas. E que não deve ser visto como economizar dinheiro para as empresas, mas como investimento em bem-estar, produtividade e lucratividade dos funcionários.
Reinvenção da liderança
Na rúbrica CEO@Home, do CEO da PHC Software, intitulada “Novo normal, novos hábitos”, Ricardo Parreira partilha que a nova forma de trabalhar (leia-se em “trabalho remoto”), “vai obrigar a uma evolução muito forte da liderança” e exigir “um sistema de liderança que avalia o trabalho das pessoas pelos resultados e pelas entregas e não pela observação, como era hábito”. Na opinião do CEO, trabalhar em casa implica ainda novas formas de comunicação e uma comunicação mais frequente, que tem em conta necessidades e diferenças entre pessoas.
Em entrevista à revista Human Resources, Diogo Alarcão, CEO da Mercer Portugal, coaduna: “(…) As lideranças devem munir-se dos meios para assegurar um acompanhamento de enorme proximidade das suas pessoas, mas também de um enorme sentido prático e de capacidade de decisão rápida. A liderança e a comunicação têm de ser muito claras para que as pessoas “não percam facilmente o norte” e o compromisso com o seu trabalho. Os líderes têm de dar ainda mais de si para poderem motivar e fazer com que as pessoas possam dar o melhor de si.”
Reforço da colaboração
Rute Ablum, Chief Managemente Officer da PHC Software, defende que “a era dos génios foi substituída pela era da colaboração” e isso tornou-se especialmente evidente diante de um desastre como o da pandemia em que vivemos, em que estamos a assistir a uma demostração dessa força incrível que o verdadeiro trabalho em equipa pode ter. Laboratórios de todo mundo, outrora concorrentes, a partilhar conhecimento em busca de uma vacina, são apenas um exemplo.
Transposto para as organizações, isto significa “a capacidade de gerar inteligência coletiva – um acelerador da decisão e da inovação, que fará com que surjam novas ideias de negócio e novas formas de melhorar o que as empresas já fazem”, especialmente crucial nos dias de incerteza que correm, e que se traduz em vantagem competitiva.
Ascensão da economia sem contacto
A adoção de canais de venda digitais está em ascensão, e embora ainda não seja claro se os comportamentos de consumo adotados durante a pandemia se manterão, criando novos tipos de consumidores, dados do SIBS Analytics, divulgados no início de junho, mostram que – e ao contrário do que poderia ser expectável – o fim do estado de emergência não trouxe uma desaceleração ao consumo via comércio eletrónico, pelo contrário.
De acordo com a Dunnhumby, empresa dedicada à área de Customer Data Science, as alterações que a pandemia de COVID-19 provocou nos hábitos de consumo deverão prolongar-se no tempo – mesmo depois de o mundo já se ter despedido desta doença –, com as expetativas dos consumidores relativamente à digitalização da economia a irem para além da disponibilização de uma loja online.
O consumidor está ainda mais exigente, e a consciência de que a interação rápida na reformulação da jornada de compra é fundamental, é tal, que a Spirituc acaba de lançar no mercado a “Beyond, a Market Research for a New Era”, uma solução para antever as reações dos consumidores, que permite às marcas, em tempo útil, contribuir para a definição de estratégias de ação que respondam àquilo que são as reais necessidades e expetativas dos clientes e potenciais clientes neste tempo tão singular.
No estudo “Humanizing Digital 2020: Consumer Expectations Report”, lançado em 2018, a Zoovu responde, em linhas gerais, à pergunta “O que é que os consumidores esperam nesta era digital”? Já na altura, numa antecipação a 2020 (três décadas após a invenção da World Wide Web), e sem qualquer previsão do que estava prestes a acontecer, “confiança” era palavra de ordem como imperativo comercial. E para ganhá-la, as marcas precisam de ouvir os consumidores e entender as suas reais necessidades e preocupações, sobretudo agora, em que a imprevisibilidade impacta mais celeremente os comportamentos.
À semelhança do eCommerce, tendências que já circulavam e que pareciam estar a anos de se tornarem populares, parecem estar preparadas para se tornarem totalmente normais numa questão de meses, ou mesmo semanas, como mostra a Marketeer no seu tema de capa – “10 tendências de consumo que estão a agitar a indústria” – do mês de junho. Tendências como o shopstreaming – uma fusão entre Ecommerce e livestreaming, que junta as compras online e as ligações sociais (interativas, experienciais e em tempo real), e o Acommerce – utilização de Inteligência Artificial (IA) e algoritmos para automatizar o comércio eletrónico em todas as fases da cadeia de valor (da angariação de clientes às entregas) ganharam fôlego durante a atual pandemia, vieram para ficar e podem ditar preferências.
Mas, e como faz questão de lembrar a Mckinsey no artigo “The future is not what it used to be: Thoughts on the shape of the next normal”, com o início da pandemia, nem só no comércio digital se refletiu a ascensão da economia sem contacto. A telemedicina e a automação são, de acordo com a consultora, as duas outras áreas onde o vírus parece ter funcionado como gatilho decisivo de viragem. Ainda assim, e apesar de ser cada vez mais “fácil” imaginar um mundo dos negócios com contacto humano reduzido, o mesmo não corre o risco de ser totalmente eliminado, defende a Mckinsey.
Eventos à distância ou economia das experiências virtuais
A Covid-19 veio retirar a capacidade de usufruto presencial de diversas experiências e, a este nível, a área dos eventos é aquela que mais se tem ressentido. Na impossibilidade de realização de eventos físicos, multiplicam-se os eventos digitais e webinares, que apesar de, à priori, eliminarem a possibilidade de interação e networking (pelo menos da forma a que estávamos habituados), respondem, de forma eficaz, a várias necessidades.
Em entrevista à revista Líder, Carlota Ribeiro Ferreira, fundadora da Win World, criadora da Happy Conference, diz que “há duas premissas orientadoras na reinvenção do negócio das conferências e dos eventos corporativos: estar na linha da frente de conhecimento das tecnologias e de todo o potencial das experiências digitais – e isto vai bem além da tecnologia, há toda uma série de conhecimentos importantes do ponto de vista de construção de conceitos e programas ou de criação e gestão de comunidades, por exemplo; e criar projetos e experiências de impacto – digitais, físicas e híbridas – para responder bem às ambições dos nossos clientes.”
A palavra de ordem é, pois, (re)imaginação, com empresas da área a verem na adaptação a única hipótese de sobrevivência. No seu tema de capa de junho, já anteriormente mencionado, a Marketeer dá o exemplo da agência POP, que criou um conceito que permite simular as dinâmicas dos eventos tradicionais através de avatares. Uma forma de conferir interatividade e humanização aos eventos digitais, elevando toda a experiência sensorial de quem neles participa.
Quando questionada pela Líder acerca do futuro, a criadora da Happy Conference diz que o regresso às salas e recintos de eventos e espetáculos é inevitável, pela própria natureza do ser humano, sedento de emoção, mas acredita que já nenhum evento será unicamente físico, dado o enorme potencial de alcance e de interação com os públicos conferido pelas soluções híbridas, e pela possibilidade de levar a experiência a pessoas que provavelmente de outra forma não poderiam estar presentes, através do streaming. A gestora antevê ainda a existência de muitos eventos unicamente digitais, pela perceção recentemente adquirida de que respondem de forma eficaz a várias necessidades.
Face à dificuldade de escreverem um plano determinístico, devido à imprevisibilidade do amanhã, resta às empresas desenvolverem aquilo que a Mckinsey apelida de novo “músculo” – uma capacidade geral para absorver incertezas e incorporar rapidamente lições no modelo operacional.
Idealmente, o “músculo” tem de ser de contração rápida, preparado para alterar planos e basear decisões em hipóteses sobre o futuro suportadas por microdados continuamente atualizados sobre o que está a acontecer.